quarta-feira, abril 23, 2008

The Grudge

Vingança é um prato que se come frio. Paciência e timming são uma bênção divina:

'Assim não vai dar', pensei eu enquanto repousava a mão esquerda na maçaneta da porta semi-aberta do quarto. Na mão direita, os pratos sujos da janta serviam de bandeja para dois copos, alguns talheres e as xícaras do café da manhã. Larguei a porta deixando-a fechar ruidosamente, deitei os pratos no criado mudo e passei a redistribuir a louça, dessa vez usando as duas mãos e tendo certeza de que cada peça estaria firmemente entrelaçada entre os dedos. Normalmente, equilibrar pilhas de louça suja em alta velocidade não seria um problema, devido à minha longa experiência em restaurantes londrinos. Mas eu estava em casa e alí as coisas eram diferente. 'Aquilo' já havia acontecido algumas vezes antes e eu não queria arriscar. Voltei-me mais uma vez para a porta e percebi que não seria possível abrí-la com o pé. Larguei os pratos sobre o criado mudo, dessa vez sem a mínima paciência, abri a porta impetuosamente segurando-a com a ponta do tênis enquanto, mais uma vez, recolhia os pratos sujos. Parei por um segundo, alinhei minha postura, respirei fundo e coloquei-me a caminho da cozinha.

Só foi possível dar três passos. Três passos e meu corpo foi sacudido pelo meu temor maior: ela. Mais uma vez, sem um pingo de noção das coisas, Ivana, a eslovaca do quarto ao lado, jogava-se na minha frente gritando 'Buuuuuu', deixando os braços abertos sobrarem na minha direção, acertando os pratos sujos e provando que minha preocupação não havia sido em vão. Dessa vez, apenas alguns talheres voaram de sobre os pratos enquanto eu recobrava meu equilibrio. 'Imprestável!', pensei rangendo os dentes enquanto ela mesma se dobrava, rindo, para recolher os talheres e alguns grãos de arroz que se espalharam pelo carpete surrado daquele sobrado vitoriano. Aquela mania estúpida havia se desenvolvido a apenas algumas semanas, mas a constância dos ataques estava começando a me perturbar.

Quando eu e minha ex-namorada fomos informados de que uma eslovaca de 23 anos de idade estava se mudando para o quarto ao lado, tive de me esforçar muito para conter a alegria que me formigava das pontas dos pés aos cabelinhos da nuca, enquanto minha 'ex' baixava a cabeça e voltava para o quarto com passos pesados, sem nem sequer considerar o fato de que o aluguel ficaria consideravelmente mais barato. Injustiça pura. No fundo, ela sabia que mulheres do Leste Europeu são tudo que um homem Sul Americano pode querer na vida. Reza a lenda aqui na Europa que as mulheres do leste têm um apetite insaciável por amor. Se isso não fosse suficiente, lembre-se de que o estereótipo feminino desse grupo consiste em: pele branquinha, olhos grandes e claros envoltos em sardinhas, cabelos loiros e volumosos, boquinha cor-de-rosa e bem desenhada, aquele corpinho moldado pela vida natural da fazenda e um narizinho... bem, o nariz não costuma ser lá essas coisas mas, cá entre nós, para um homem solteiro, se ela exibisse apenas dois dos atributos citados acima, algumas pints de cerveja cuidariam do resto. As estatísticas estavam do meu lado. No dia em que fomos finalmente apresentados, senti a punhalada da vida real nas minhas costas. Enquanto minha 'ex' abria um sorriso imenso e genuíno para recebê-la de braços abertos, era eu quem baixava a cabeça e voltava para o quarto com passos pesados. Ivana não era nada parecida com a eslovaca dos meus sonhos e a quantidade de cerveja nescessária para embelezá-la seria aproximadamente três vezes maior do que a quantidade que me deixaria em coma alcoolica. Impraticável. Ivana era gorda e mal-formada e o único atributo do estereótipo que se aplicava a ela era o nariz. Mas esse foi apenas o primeiro susto que tomei.

Apesar dos pesares, tendo ela se tornado a melhor amiga da minha 'ex', convivíamos pacíficamente entre um susto e outro, tolerando-se uns aos outros. Ela era frequente nos meus shows, iamos a bares, restaurantes e cinemas. Foi então que, após uma dessas nossas saídas, flagrei a grande chance de ensinar uma lição e me vingar de toda a incomodação causada pela polaca (sim, para o bom paulista que sou, que no Brasil chamava todos os seres de Minas Gerais pra cima de Bahiano e do Paraná pra baixo de Gaúcho, qualquer ente vindo do leste europeu se tornou Polonês).

Era um domingo. O vento gelado varria as últimas folhas duradas do outono naquele final de tarde escuro. O sol havia se posto às cinco da tarde deixando na negritude do relento apenas as árvores secas, que resistiam bravamente ao sopro forte, sacudindo suas silhuetas atormentadas com assovios que ecoavam pelas ruas daquele norte londrino. Caminhamos o último trecho entre a avenida principal e nossa ruela com dificuldade e em silêncio, como se tivessemos medo de congelar por dentro ao abrir a boca. Com as vistas embaçadas, identificamos nosso sobrado em meio a tantas outras casas igualmente pontiagudas que, juntas, formavam um grande serrote no horizonte. Entramos apressados enquanto, lá no fundo da minha cabeça, eu lembrava que a idéia estúpida de sair de casa para ir ao cinema num dia daqueles só poderia ter sido da Ivana. Dirigi-me a meu quarto e esperei. Eu saberia que era a hora, quando a hora chegasse...

Acabavamos de voltar de uma sessão do filme 'The Grudge'. Um filme de terror japonês no estilo de 'O Chamado' onde um monstro horrendo e impiedoso que morava no sotão, na pele de uma japa morta pelo marido, enlouquecia e assassinava toda e qualquer pessoa que ousasse habitar a casa maldita onde ela viveu (talvez ela fosse Chinesa ou Koreana mas, lembre-se, sou paulista). Contudo, apesar da elaborada trama, o único momento que eu realmente gostei no filme foi a hora em que notei o quão semelhante eram os cabelos da 'japa-zumbi' com aquela peruca de Ozzy Ousborne que eu tinha no armário lá de casa...

Sozinho no meu quarto, meu coração batia forte e meu sangue corria friamente pelas minhas veias. A coceira causada pela peruca do Ozzy vestida ao contrário para cobrir meu rosto parecia não incomodar enquanto esperava no escuro, de portas abertas, o momento em que ela saisse do quarto ao lado e caminhasse pelo corredor escuro a caminho da cozinha, a única área social da casa onde costumeiramente nos reuníamos para partilhar as agruras do dia a dia. Não demorou muito até que ouvi o estalo de sua maçaneta. Esperei que ela apagasse a luz e caminhei silenciosamente atrás dela. Quando ela finalmente alcançou a porta que ligava o corredor à cozinha e começou a abrí-la, aproveitei-me do opaco faicho de luz que invadia o ambiente e dei um grito agudo. Seu corpo flácido tremeu e se virou. Seus olhos se arregalaram na maior expressão de pavor jamais vista pela minha pessoa, enquanto suas mãos dormentes começavam a arranhar suas bochechas pálidas e rechonchudas. Num par de segundos que me pareceu uma eternidade, ela encheu os pulmões de ar com dificuldade para o relincho instintivo. O grito paralizou a vizinhança. Aproveitando a força do ganido, ela se jogou de costas batendo a porta mal fechada, isolando mais uma vez a presa e o predador, no escuro. Ainda de pé, seus joelhos cederam ao peso injusto da indulgência e foram dobrando lentamente, enquanto suas costas esfregavam porta abaixo até o chão, sem desviar os olhos do terrível monstro japonês que a essa altura do campeonato já tinha arrancado a peruca e estava de joelhos, dando tapinhas leves na cara dela, tentando reanimá-la.

Ela nunca mais falou comigo. Minha louça e meus talheres, por sua vez, viveram felizes para sempre.