Um dia com Syd Barrett (parte 1)
Roger, para os íntimos.
Terça-feira, 28 de outubro de 2008, cedo da manhã. Ziguezaguei mal dormido e mal humorado até o carro dez minutos antes do prazo do meu ticket de estacionamento vencer, só para descobrir que já havia sido multado. Esfreguei a ramela do olho, reajustei o foco e olhei ao redor para finalmente enxergar o que me falhou na escuridão da noite anterior: o poste com o aviso dizendo 'NÃO ESTACIONE DESTE LADO DA RUA'. Lembrei-me então de que, ao tentar sair do veículo na noite anterior, bati a porta neste mesmo poste e ainda praguejei algo do tipo 'Quem foi o imbecil que colocou essa merda aqui?'. Pergunta respondida, £120 libras mais pobre, chacoalhei a poeira, dei a volta por cima e decidi que nada estragaria aquele dia especial.
Encontrei-me com o Frank as 11 da manhã do outro lado de Londres e juntos partimos em uma viagem de uma hora e meia para Cambridge, onde rolava o 'City Wakes', evento planejado e realizado pela família e pelos amigos mais próximos de Syd Barrett para celebrar sua vida e sua obra. Se você ainda não sabe quem é esse tal de Syd Barrett, favor clicar no link e ler meu antigo post entitulado, veja você, Syd Barrett
Chegamos em Cambridge atrasados como sempre, estacionamos o carro e corremos como loucos rumo ao ponto de encontro, sem tirar os olhos das direções dadas pelo GPS que Frank segurava firmemente a sua frente. Cinco minutos mais tarde, já sem folego e com aquela dor aguda na lateral do abdômem, resolvemos parar e recalcular a rota, dessa vez lembrando de selecionar a opção 'walking route'. O GPS piscou, calculou e lançou: 'Retorne assim que for possível', indicando que corriamos na direção contrária, obedecendo as leis de trânsito em uma rua de mão única. Trocamos olhares decepcionados e sem forças para reclamar, demos meia volta e mancamos sofrida e lentamente na direção correta. Alcançamos a Wheeler Street 10 minutos atrasados e encontramos David Gale, cercado por um pequeno grupo de pessoas e uma equipe de TV norueguesa, nos esperando para começar o primeiro passeio turístico.
David Gale e Syd Barrett se tornaram amigos na adolecência em Cambridge, tiveram suas primeiras experiências com drogas juntos e mudaram-se para Londres em 64 onde Syd mais tarde se uniu ao Pink Floyd. Lá eles dividiram um flat de 2.5 por 3.5 metros, sem água quente em Tottenham Street W1. Hoje Gale, 62 anos, em seu pesado sobretudo negro, desbotado com o uso excessivo em uma cidade muito fria e úmida, nos levava para um passeio por aquelas ruas medievais, apontando os principais pontos de encontro da galera nos anos 60 e contando histórias sobre os personagens mais marcantes na vida de Syd.
Começamos o passeio à beira do rio Cam numa área gramada chamada Laundress Green onde os adolecentes da época deitavam-se para fumar o sagrado baseado em frente ao pub The Mill, na Mill Lane. Lá Gale descreveu o impacto comum causado pela diária chegada de Syd, um estudante de artes jovem alto e forte que vestia calças jeans pintadas e apertadas o suficiente para desafiar as leis da física, camisa para fora da calça coberta por um smock (espécie de avental usado por alunos de arte) e óculos wraparound de plástico preto. O impacto era acentuado pelo seu andar característico de pavão saltitante que acentuava o balançar, para cima e para baixo, de seu cabelo, comprido (para os padrões da época) e encaracolado. Gale lembrou-se de que, apesar desse visual cool e arrogante, Syd era uma pessoa amena e receptiva, que interagia com todos de maneira alegre, jamais demonstrando qualquer sinal de um dark side.
Deixamos o gramado e caminhamos cerca de cinco minutos por ruas estreitas até uma ruela chamada Market Passage, escondida no emaranhado gótico do centro dessa cidade que merece ser visitada. Paramos em frente ao 'Café Ta Bouche', um coffe shop muito simples e vazio, aos pés de uma quadra recém reformada e pouco atraente. David Gale nos contou então que nos anos 60 esse lugar não era uma café, mas sim, um pub chamado 'The Criterion', frequentado por soldados Americanos, Teds (sujeitos atrasados em moda e gosto musical), Beatnicks (hippies), mecânicos baixinhos e invocados e estudantes jovens, como Syd e David, geralmente disfarçando a idade para não serem arremessados para fora pelos filhos do dono do bar, os irmãos Hart, renomados pelo modo psicótico com o qual resolviam pendengas profissionais.
Terminamos nosso passeio em frente ao 'Corn Exchange', principal casa de shows de Cambridge na Wheeler Street, bem em frente ao centro de informações turísticas, exatamente onde nosso passeio começou. Depois de deixar o Pink Floyd em 1968, Syd voltou para Cambridge e saiu dos olhos do público por alguns anos. Em 1972, ele montou uma banda de vida curta chamada 'Stars' com ex-membros da banda londrina 'Pink Fairies' e foi aqui no 'Corn Exchange' que eles marcaram shows esperados por fans como uma possível ressurreição. David começou então a descrever o comportamento desastroso de Syd durante os shows mas teve sua narração interrompida por uma dezena de estudantes que passavam aos gritos em bicicletas de cestinha, aparentemente o meio de transporte mais comum daqui. Passada a poluição sonora, ele continuou a contar que Syd, durante essas gigs, ficava tocando acordes desafinados e desconexos, imóvel, com a maquiagem negra dos olhos derretendo rosto abaixo, sem nenhuma noção do que acontecia ao seu redor. A luz que ele antes radiava havia se apagado, sentimento competentemente descrito mais tarde pelo próprio Pink Floyd em 'Shine On You Crazy Diamond' com trechos da letra que rezam: "Lembra-se de quando eramos jovens? Você brilhava como o sol. Agora seus olhos são como buracos negros no céu".
Twink, o baterista dessa fatídica banda, relembra que alguns dias depois do último show no Corn Exchange Syd parou ele na rua, mostrou um jornal com a crítica do show e pediu as contas alí mesmo. Outras tentativas de capitalizar em cima do nome de Syd Barrett aconteceram mais tarde, sem sucesso.
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