Um dia com Syd Barrett (parte 3)
St Paul's Church
Cambridge
Saimos da Ruskin Galery em silêncio, ambos imaginando o quão arriscado teria sido levar um dos quadros embora para casa. Depois de expôr nossos planos de roubo abertamente e concluir que o risco era um pouco alto demais, Frank tentou me convencer a voltarmos para Londres onde ele teria uma sessão de gravação às 8 da manhã do dia seguinte. Negociamos e decidimos dar uma passada rápida no último evento do dia: The Happening. Caminhamos debaixo de chuva até a St Paul's Church na Hills Road. Tanto eu quanto Frank não sabíamos o que esperar pois as descrições no programa impresso eram vagas e confusas. Sabíamos que a participação da audiência seria importante e que nossa presença era uma forma de contribuir com os esforços dos organizadores.
Fomos recebidos no saguão de entrada da igreja por uma mulher de meia idade claramente vestida para uma festa a fantasia. Enquanto equilibrava uma prancheta, uma caneta e uma taça de vinho tinto, ela nos explicou as regras do 'jogo'. Disse que tinhamos que ficar à vontade, não desligar o telefone, fazer e receber o máximo de ligações possíveis e que podiamos caminhar por qualquer área do evento, incluindo o palco, onde uma tela em branco e pincéis com tinta eram oferecidos para quem quisesse deixar sua marca. Ela nos disse também que os performers do evento haviam recebido uma pilha de placas que, virando uma a uma, informariam o que deveria ser feito e por quanto tempo. 3 placas diferentes estavam embaralhadas e distribuidas entre os artistas com as seguintes instruções: 'Tocar por 3 minutos', 'Falar por 3 minutos' ou 'Silêncio por 5 minutos', o que garantiria a atmosfera inusitada da apresentação. Depois de anotar nossos nomes e telefones na prancheta, ela nos apontou a porta de entrada que nesse mesmo instante se abria para um ser vestido de Elvis Presley, com uma peruca pichaim grande o suficiente para arruinar a visão de qualquer infeliz que tivesse o azar de sentar atrás dele, que procurava uma área aberta para fumar seu cigarrinho. Ele sorriu, disse oi e nos deu passagem apontando para dentro da igreja com a mesma mão que também segurava sua taça de vinho.
Ao passar por aquela pequena porta de madeira de acesso à nave principal da igreja, viajamos no tempo e no espaço, entendendo imediatamente porque aquele evento seria o principal da semana. Segundos atrás, nos encontravamos em uma igreja no centro de Cambridge. Agora estavamos no UFO club, na Tottenham Court Road em Londres, de volta aos anos 60, no cenário típico das primeiras apresentações do Pink Floyd. No palco, que havia sido montado no altar da igreja debaixo de uma cruz gigantesca, um saxofonista-trumpetista, uma flautista, um baterista e um tecladista, todos acima dos sessenta anos de idade, se revesavam entre pintar, falar e tocar, em uma performance imprevisível. Cinco projetores iluminavam todo o ambiente. O primeiro deles, projetado na parede inferior esquerda atrás do palco, apresentava cortes de filmes caseiros de Syd, mostrando cenas da sua infância, de alguns camarins na época áurea com o Pink Floyd e uma de suas primeiras viagens de LSD. Na parte inferior direita, o segundo projetor exibia imagens que simulavam uma viagem pelas estrelas, com cores que variavam com a intensidade do momento. Os três útimos projetores, no entanto, guardavam a melhor parte. Projetados na parede superior do palco, sobre a gigante cruz encrustrada e nos pilares em ambas as laterais do palco, os desenhos psicodélicos escorriam e se interpunham pelas paredes, ora como uma grande gota de sangue, ora como uma irresistível chuva de estrelas num espetáculo de cores e psicodelia, provido pelo lendário Peter Willson, o iluminador oficial do Pink Floyd, responsável quase que anonimamente por boa parte do sucesso dos shows da banda nos anos 60, que se colocava em pé, com a prontidão de um soldado, orgulhoso ao lado de seu maquinário na escuridão dos fundos da igreja.
Procurei um lugar para sentar bem longe de onde o Elvis de peruca já se encontrava de volta, em um dos acentos de madeira gelada daquele local de adoração deturpado pelo rock progressivo, enquanto Frank se distanciava para o bar improvisado na asa direita da nave. Acomodei-me e assistí maravilhado à aquele show de luzes, imagens e sons desconexos saboreando um robusto vinho tinto da casa (de Deus) tentando juntar coragem para caminhar até a lateral esquerda do palco e pintar a minha marca. Na audiência, formada na sua grande maioria por familiares e amigos de Syd, cerca de 80 pessoas assistiam atentamente ao espetáculo, garantindo o clima intelectual típico de Cambridge. De tempos em tempos alguém da platéia se levantava e gritava alguma coisa para os performers, geralmente ofensiva, para o espanto geral. Meu telefone toca. Finalmente vou poder fazer a minha parte nesse evento, pensei eu enquanto tateava os botões do celular no escuro, tentando descobrir quem chamava. Um numero desconhecido piscava na pequena tela do aparelho que eu atendi disposto a falar em alto e bom tom, para que não houvesse dúvida para os amigos de Syd que eu queria coperar.
'Alô?' Disse eu baixinho, enquanto minha voz falhava (eu só estava esquentando).
'Essa é sua chamada de despertar' disse a voz feminina do outro lado da linha fazendo menção ao nome do evento (City Wakes) com uma determinação que me cortou como uma navalha fria. 'Eu preciso que você me faça um favor...' continuou a voz, inabalada pelo meu silêncio '...eu preciso que você se levante, caminhe até o palco, olhe nos olhos do locutor principal e grite o mais alto que você puder: Ninguém me diz o que fazer! NINGUÉM! ... entendeu?'
'Sim', respondi eu, num tom de voz tão forte e imponente quanto o de uma velhinha de noventa anos.
'Não tenha pressa', disse ela, 'Faça isso quando você se sentir à vontade'
'Sim', ataquei eu novamente com minha imitação de Madre Teresa de Calcutá.
A ligação foi encerrada e eu me encontrei novamente na segurança do anônimato na escuridão da igreja. Olhei em volta e descobri que Frank havia se retirado para mais um cigarro. Matei a taça de vinho num gole, levantei-me silenciosamente e me arrastei pelas sombras para fora da igreja. Encontrei o Frank encostado na parede do lado de fora falando no celular copiosamente. A chuva que havia nos castigado durante todo aquele dia agora se transformara em uma neve muito fina que empapava o chão e dificultava a arte de andar.
'Frank, preciso de você!', disparei ignorando a conversação que ele parecia estar curtindo. Antes que ele pudesse pensar qualquer bobagem, comecei a explicar o que tinha acontecido na ausência dele, assistindo a cara dele se modificar em choque. Frank desligou o celular encolheu os ombros e com um expressão de alívio disse, 'Bixo, o que é que você quer que eu faça?'. Está aí uma coisa que eu não tinha pensado: o que é que ele poderia fazer por mim? Me levar até o palco pela mão e me apresentar para os performers anunciando que eu tinha algo pra dizer? Disfarcei a atenção para a neve enquanto pensava em alguma coisa, até perceber que eu tinha que fazer isso sozinho.
'Vem filmar', disse eu virando as costas resignadamente.
Lá dentro a psicodelia comia solta quando caminhei até a frente do palco, olhei diretamente para o locutor principal da noite, Mr Nigel Lesmoir-Gordon e gritei com todo meu ódio 'Nobody tells me what to do! NOBODY!'. Nigel parou assustado por um instante, abriu um sorriso e concordou: 'É isso aí! Ninguém diz a ele o que fazer!'. Algumas palmas soaram na minha direção enquanto eu fazia meu caminho triunfante de volta ao meu acento, antes de ser interrompido por uma figura paternal alta e familiar. Matthew Scurfield, ator e escritor de uma das várias biografias de Syd Barrett, estendia a mão para me comprimentar.
'Gostei muito do que você disse!', falou ele, com a autoridade de um amigo de infância de Syd, no seu tom pausado. Agradeci todo sem jeito e fiz menção de continuar o meu caminho de volta à paz da escuridão quando ele continuou: 'Eu quero subir no palco e participar também, mas sou muito tímido... você faria a gentileza de subir lá comigo? Meu triunfal alívio me abandonou instantaneamente e enquanto sentia minha pressão cair, olhava o rosto carismático de Mr Scurfield e percebia que era impossível dizer não. 'Sim', disse eu já arrependido, naquele tom de vovozinha. Caminhamos de volta ao palco e nos posicionamos cada um de um lado de um microfone num pedestal tão alto que me obrigava a subir na ponta do pé e olhar para cima num angulo de 180 graus para tentar gemer qualquer coisa. A conversa se iniciou como uma conversação telefônica de dois guris de cinco anos de idade:
Ele: 'Oi, qual o seu nome?'
Eu: 'Meu nome é Gui' (impossível tentar fazer um inglês falar 'Guilherme' e/ou se lembrar desse nome no dia seguinte)
Ele: 'Como vai você, Gui?'
Eu: 'Bem, e você?'
Ele: 'Gostei do que você falou antes.'
Eu, sem saber o que dizer: 'Gostou?'
Ele: 'Sim e eu não quero te dizer o que fazer. Eu estava preso... em um material físsil... e eu não pude sair por um bom tempo... foi quanto te avistei'. Nesse momento ele dá um passo para trás, claramente abrindo espaço para que eu falasse algo. Parei em frente ao microfone, corri os olhos por aquela platéia de senhores e senhoras em trajes ricos e chiques, confortáveis com seus sorrisos brancos e suas taças de vinho pela metade, curiosos com a presença desse inusitado plebeu, sentí o alcool do vinho bater nos meus miolos e comecei meu discurso:
'Quando foi que vocês se acomodaram? Vocês Inglêses costumavam ser o melhor povo do mundo! Costumavam... não são mais...', nesse momento alguém da platéia começa a rir e grita para que eu abaixe o pedestal do microfone e saia das pontas dos pés. Puxo o microfone para baixo, me desculpo pela pouca estatura característica de terceiro mundo e continuo, apontando para a tela com filmagens antigas de Syd no fundo do palco: 'O que aconteceu nessa época, Syd, seus amigos, sua geração, transformou a minha existência e moldou minha personalidade. Eu sou um fruto da vossa cultura, cultura essa que me ensinou a lutar pela liberdade!' Depois de uma pausa, concluí num tom de voz triste e indignado:
'Mas vocês se acomodaram'.
Resolvi encerrar o discurso por alí e sair do palco. Queria ter lembrado a eles que, enquanto estavamos lá reunidos, nos divertindo com nossos vinhos e interesses artísticos, vinte e cinco mil crianças morrem de fome todo o dia ao redor do mundo. Cinquenta mil se contarmos doenças preventivas. Queria dizer o quão decepcionado eu ficava cada vez que um inglês indiferentemente anunciava que é cada um com os seus problemas e que isso não é problema deles. Queria lembrar aos que pensassem assim para reconsiderarem a questão quando voltassem para casa e começassem a trancar suas portas com medo do mundo lá fora. Haverá violência enquanto houver fome. Haverá exploração enquanto houver demanda. Bastava que eles se dessem conta disso e o problema se transformaria nas nossas frentes sem que ninguém precisasse pegar em armas ou sequer mover um dedo. Bastava que eles entendessem as lições de amor e liberdade que eles mesmos nos deram nos anos 60 e 70. Queria ter dito muitas coisas mas , com medo de apanhar, recolhi meu rabinho entre as pernas e resolvi guardar as estatísticas para mim.
Alguns minutos depois, Matthew Scurfield me abordou mais uma vez e me convidou para voltar ao palco. Dessa vez recusei o convite educadamente dizendo que minha cota de coragem do ano já tinha se esgotado. Ele então me abraçou sem jeito e num tom de voz emocionado me agradeceu pelas doces palavras que visivelmente o tinham tocado. Eu tinha a metade da idade dele, vinha do outro lado do mundo e ainda assim anunciava com orgulho o quanto a geração dele me serviu de molde. Ele entendeu o que eu disse e ele entendeu também o que eu não disse. Eu havia aprendido as lições que ele e seus amigos me ensinaram no passado.
Nos despedimos de Mr Scurfield e caminhamos de volta ao carro com um sentimento de missão cumprida. Dirigimos de volta para Londres em silêncio, sob uma neve brilhante que agora pesava e se acomodava no acostamento. Sim, a neve também se acomoda. E acomodar-se é a última coisa que ela faz antes de derreter e desaparecer.
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