quarta-feira, abril 30, 2008

O Viciado

Eu comecei muito cedo. Mas comecei com um pequeno, pois eu tinha medo. O primeiro, se bem me lembro, foi aos 11.

O contato com o perigo sempre me excitou e meu coração batia forte só de chegar perto. Levou algum tempo para esse medo passar e se transformar numa obcessão. Eu chegava da escola e essa era a primeira coisa que vinha na minha cabeça. Vários, de tamanhos, cores e viajens diferentes, se espalhavam pela casa como acessórios fundamentais da minha decoração. Muitas vezes tive que mentir para meus pais, dizendo que era de um amigo. Mas era meu. Sempre.

Alguns amigos se afastaram de mim. Não gostavam do cheiro e diziam que eu ficava muito bobo, rindo à toa. Se eles ao menos soubessem como era bom... as vezes rolava uma paranóia mas sempre acabava tudo bem. Por muito tempo acreditei que essa brincadeira nunca me faria mal. 'Como pode alguma coisa com tantas ligações com a natureza fazer mal a um ser humano?' questionava arrogantemente, cego para as implicações que esse vício teria no meu futuro próximo.

Experimentei todos que pude adquirir até que a mudança forçada de circunstâncias, na ocasião de minha vinda para a Inglaterra, me obrigou a 'dar um tempo'. Dividia uma casa com várias pessoas. Não havia privacidade. Nas ruas, só os encontrava com alguns poucos mendigos. Acabei perdendo o contato. O problema é que, no fundo, eu ainda simpatizava. Achava legal. Eu era jovem e ingênuo. Mas paguei o preço. Com juros e dividendos.



erta feita, voltando de mais um turno desumano de trabalho, cansado, deprimido e cabisbaixo, vinha eu subindo a plataforma de saída do metrô, me limitando a olhar para a ponta dos meus pés que se arrastavam no mármore gelado da estação de Finsbury Park. Por não estar olhando para frente, fui obrigado a fazer uma freagem de emergência para evitar atropelar uma bolinha de pelos que subitamente apareceu na minha frente. Um cachorro de médio porte com cara de pidão sentava-se no chão, bem no final da plataforma, bloqueando a passagem. Um sentimento de alegria tomou conta de meu eu, dobrando meus joelhos e me forçando a acariciá-lo, impetuosamente. Na minha carência pela natureza, esqueci-me por um par de segundos de procurar saber quem era o dono daquela pequena criatura. Enquanto afagava os pelos escuros daquele cão, notei que um par de sapatos brilhantes se posicionava diretamente atrás do bixinho, como que ajudando-o a bloquear a saída da estação. Fui subindo os olhos lentamente, acompanhando as pernas do proprietário até o topo. Demorou um pouco. O cara era alto. Ao finalmente alcançar a cabeça do indivíduo que olhava para trás como se conversasse com alguém às suas costas, assisti seu rosto voltar-se pra frente e abaixar-se na minha direção, assustando-se com a visão da minha pequena figura. Só quando ele abaixou a cabeça pude ver seu chapéu preto e alto com o simbolo brilhante da polícia metropolitana.

Uma mão pesada repousou sobre meu ombro quase que instantaneamente colocando-me bruscamente de pé e com voz grave e rouca ele disse 'Meu amigo quer falar contigo!'. Fui então conduzido, zonzo e começando a realizar a roubada em que eu estava me metendo, a um dos cantos da estação para uma entrevista com um segundo oficial que, sem tirar os olhos de sua prancheta, começou a interrogar.
Oficial: 'Por que você acha que esse cão te abordou?'
Eu: (Envergonhado ao perceber a burrice dos meus atos. Quem, senão um imbecil completo, acaricia um cachorro da polícia anti-drogas?) 'De repente', pensei rápido, 'o cão gostou de mim?' completei, realizando que deveria ter pensado um pouco mais e num tom de voz que claramente demonstrava que mudei de idéia no meio da frase.
Oficial: 'Esse cão é viciado em drogas! Ele não tem amigos...', só então desviando os olhos de sua prancheta e fulminando minha pupila numa expressão nada amigável. Chocado com a resposta e tendo falhado em impressionar, baixei a cabeça e me limitei a responder perguntas e oferecer meu corpo para ser apalpado por todos os cantos mais íntimos. Me polparam da luvinha. Vaselina, aparentemente, estava em falta.

O sistema me pegou dessa vez. Meu amor por cães me levou à humilhação pública na estação, repleta de transeuntes curiosos e repugnados. Seus olhares me jogavam pesadas cargas de acusação e julgamento, como numa forma mais evoluída de apedrejamento. Perdi meia hora da minha vida esvasiando os bolsos, sendo virado do avesso e tratado como marginal.

Compreendi exatamente a extenção de cada letra do album 'The Wall', que conta a história de um homem à beira da loucura que é perseguido pelo sistema por demonstrar sentimentos humanos.

Fui provavelmente o primeiro homem na face da terra a ser fichado por ser viciado em cachorro.

'... Mother do you think they'll drop the charge?'

1 Comments:

At 5:49 PM, Anonymous Anônimo said...

"Moon foi cremado e suas cinzas foram jogadas em um jardim, aqui perto de casa. Neste exato momento, enquanto teclo, a brisa de outono assopra levemente trazendo a poeira da rua para dentro do meu apartamento e para dentro de minhas narinas. Com licença, preciso ir quebrar alguma coisa..."

Juro que me arrepiei e enchi os olhos d'água quando li isso. Uma das coisas mais fantásticas que já li na vida.

 

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